ParteI
Repare, meu caro Kerouac, saiba que aqui a vida anda desoladora e como você sobrevivi aos consórcios por anos, e eles assim me proporcionaram vinhos baratos e leitura cara! Os cigarros vingavam-se de meus pulmões e o ar nunca me faltou, embora a comida de bandejão tenha me feito regurgitar pensamentos sartreanos! Cá ainda ouço nossa canção, aquela de Bob Dylan que inspirou tantas involuções! Tenho saudade apenas do tempo que nos sobrava e de seus olhos de paisagem quando eu falava de sentimentos pouco nobres!
Aquilo sim era um Royal Straight, baby!
E depois de esgotar as vontades vãs tento não me apegar às futilidades de uma vida vazia, mesmo sabendo que as pequenas epifanias nascem desses abusos frívolos e descartáveis.
O amor para mim tem cheiro de látex e gozo puído.
Mas odeio sentir-me dependente e percebo que quero é espatifar qualquer vínculo, qualquer vício, mas acabo me entregando a eles com mais violência do que quando me apeteciam as dependências.
As garrafas secas lanço contra o concreto armado, as bitucas de cigarro pisoteio para se apagarem, mas compro tudo que desdenho mais de uma vez.
Até quando vou poder pagar pra ver?
ParteII
Suas alegorias insanas me trazem lembranças do tempo em que as esquinas me eram menos sombrias e fétidas. De quando os olhos alheios não me causavam asco e não me chicoteavam danos.
As humanidades nunca me proporcionaram pão e vinho e se não fosse minha capacidade de abstrair talvez não tivesse sobrevivido.
Mesmo assim, Kerouac, doei-me a seus devaneios por altruísmo, de maneira simples e cívica me coloquei em seus braços magros e jovens como quem se entrega com gosto ao seu carrasco.
Nos becos o caos, a selvageria, a desordem e o atentado ao próximo sempre me acompanharam de perto, mas era jovem e inconsequente, nada me atingia em cheio!
Nós nunca almejamos arco-íris ou chuva de meteoros!
Enquanto você me esperava em casa com a perna quebrada, por tantas rasteiras da vida, eu me vendia por bebida e diversão. Por horas, dias e anos estranhos meteram a mão por baixo de minhas saias arrancando-me ralos pudores, deixando esmolas e levando gozos recolhidos.
Não estou reclamando, aprendi contigo a não me arrepender de nada! E o vil metal que troquei por mim comprou-me ovos fritos, conhaque e companhia sua.
Parte III
É certo que dinheiro não compra tudo, mas nos dá a dimensão quase completa do possuir, o que creio seja o mais próximo dessa tal felicidade utópica.
Você nunca foi óbvio e por vezes se zangava com minhas serenidades, mas o que posso fazer?
Por mais que queira não ser mulher, por mais que negue essa condição imposta e desonre essa tal feminilidade, ainda sou mulher e tenho sentimentalidades.
A tala na perna e o andar desajeitado te deixaram mais frágil e as impossibilidades te fizeram um pouco mais meu e isso te desagradava.
Não pense que desconheço tal sentimento, você sempre me aprisionou em sua boca, baby!
Foi bom ter seu corpo entregue aos meus cuidados, naqueles dias.
Banhar e alimentar o homem que venerei apaziguava as dores de faltas e ausências.
Do que não senti por não parir, creio que tive ao acolher-te.
Não digo isso com amor, o sentimento de posse é mais forte que qualquer outro, fui dona de alguém, mesmo que por pouco tempo.
Temos nossas brevidades pérfidas e admito que gostei de ter-te, naquela época em que não tinha quase nada além de mim.
Parte IV
Conheço bem sua filosofia do tudo ao mesmo tempo, agora. E sei que se irritava em ter apenas duas mãos para abraçar esse mundo gigante.
Nunca dormia antes de você e quero que saiba que ouvi todas as suas orações para Dean Moriarty, nosso deus-pai.
Sabe, eu já quis tudo ao mesmo tempo e não aguentei o tranco, nem Dean aguentou e acabou como pastorador de carros numa garagem qualquer em Nova York.
Já estive no chão, na lona, sei bem a sensação de um direto cruzado, o sabor do sangue na boca e o gosto que a derrota tem. E às vezes arroto com o gosto dela na boca!
Mas a derrota não me traz desmerecimento, ela é minha única e verdadeira glória, baby!
Ainda amo você por me fazer lembrar do que vivi quando tinha a sua idade e para quem não acredita em deuses isso é bento!
Sobraram-me apenas alienações e as recordações das viagens alucinadas que fizemos.
Não tenho mais com quem compartilhar minhas sandices e a vida desregrada que levo, estou entregue ao álcool, às drogas e aos viscos sexuais.
Outrora pensei em regressar ao nosso canto e olhar-te mais uma vez nos olhos, como quem anseia se encontrar fora de si, mas já desisti.
Não somos os mesmos!
Parte V
Embora todos os homens me tratassem bem e me fizessem feliz por algum tempo, as mulheres constantemente lançavam-me olhares de fúria e desdém, não que eu procurasse a aprovação delas, mas sempre fui rechaçada como um demônio entre as santas imaculadas no Paraíso.
No fundo sinto que queriam ser como eu, mas moças bem criadas não suportariam as cargas que já carreguei e não se sujariam como já me sujei. Mas elas aguentam calcinhas, nunca gostei delas, marcavam minhas roupas e o que é pior, dilaceravam minha carne. Melhor mesmo era não usá-las e quando alguma senhora polida me olhasse com descaso abaixava-me perto de seu cônjuge para constrangê-los em público.
Tenho porte, mas não tenho classe, baby!
A decadência foi a menina de meus olhos, mesmo que eu quisesse progredir sempre acabava me lançando na sarjeta, de onde jamais deveria ter saído. Por mais que gastasse tudo o que tinha em sapatos caros, cheirava à bebida barata.
Parte VI
Os sapatos vermelhos e as meias arrastão foram meu uniforme por anos, nas ruas aprendi a não esperar nada do outro que não fosse um direto cruzado.
Em meu caminho sempre houve quem quisesse só me derrubar.
Lembra de nosso último Natal juntos? Recordo que me deu sapatos vermelhos envernizados, daqueles caros que eu gostava e te dei luvas de boxe.
Os bebês deveriam ganhar, ao invés de chupetas e doces, luvas de boxe e aquele boneco “João-bobo” para aprenderem golpear desde cedo.
Tenho braços finos, olhos dormidos, uma boca enorme, minha sorte são os pulsos firmes e a respiração constante. Mas o que derruba é o álcool, esse sim diminui as dores e os dias de vida, aliás, elegi a bebida como mãe-protetora, ela apóia, dá colo, esquenta o peito e atenua a visão dolosa do mundo.
Ainda calço aqueles sapatos, como que se batê-los e repetir em voz alta que: “não há lugar melhor que minha casa”, eu voltasse a sentir a garoa das noites menos infelizes que esta.
Parte VII
Nunca me iludi com saudosismos baratos, mas sinto saudades do tempo em que estivemos juntos, tinha companhia e assunto depois do sexo. Com quem mais discutiria Maiakovski depois de trepar? Sexo bom, diga-se de passagem.
Perdi a conta de quantas vezes preparei o revolver e quis reduzir minha vida de forma simplista, como Maiakovski fez, quem dera tivesse tido coragem!
Optei pelos sacolejos das viagens, as caronas com estranhos, o sexo alucinado. Escolhi dissolver fronteiras e perverter o cais, ir além do que esperavam de mim. Preferi magoar.
Gostava do cheiro de sua jaqueta surrada que me aqueceu durante algumas noites, embora preferisse seu corpo. Mas nem sempre pôde estar comigo, o mar chamava você de tempos em tempos e eu ia ao porto ganhar a vida, na espera de seu aroma em mim.
Assim nos deixávamos vaga e dolorosamente.
Trazia-me galhos de presente, um a cada chegada, alguns floridos outros estéreis, mas eles vinham com um toque de dúvida.
Havia mais de uma razão para viver naqueles tempos, embora aquela arma dentro da bíblia hora ou outra me desafiasse a brincar de roleta russa e ela me deixou perder todas as vezes!
Apressados e atrasados nos tocávamos e nos deixávamos sós.
Hoje encontrei um galho seu entre “O proletário voador” e “A plenos pulmões”, sangrei.
Parte VIII
Que hora é melhor que agora, esta hora que falo, mordo e sangro?
Talvez um dia eu sinta saudade do hoje, dessa carta e do derramamento espontâneo que me deixa mais frágil que nunca.
Da mesma forma que vivemos, o inferno não pode esperar, é tudo agora ao mesmo tempo, já!
As palavras desse escrito, carregadas de ternura podem enganá-lo, baby!
Mas não redigi uma linha dada aos destemperos balzaquianos e fechei os olhos para as rugas que me atravessavam o rosto, meu êxtase e castigo foram e serão as premissas da luxúria.
Recordo-me do dia que nos conhecemos, quando me encontrou numa sarjeta qualquer, depois de ter sido sugada e abandonada.
Levou-me para sua casa, tirou-me a roupa, lavou-me, como que em um batismo, onde se tira todo pecado do mundo.
Uma estrangeira entre seus lençóis e não me tocou a carne, não naquela noite!
Parecia-me engraçado não trepar comigo e se enfiar debaixo das cobertas e ficar olhando minha buceta, como se não fosse igual a todas as outras. Isso confundia e me envergonhava, tanto que fingia estar dormindo. Mas você se assegurava de que eu tivesse bem acordada, fazendo perguntas do tipo: “quantos homens já teve?”, “quem foi o primeiro?”, “ele te amou?”, “como ele te deixou?”...
Enlouqueceu-me com seu interrogatório ao ponto de eu pedir que me currasse ou quebrasse meu pescoço! Entendo que queria mais que sexo.
Talvez fizesse isso para me deixar constrangida, para me ferir, como saber?
Por isso me magoa tanto meu marido não perguntar como foi meu dia.
Os becos me eram mais gentis e menos aterradores que o cotidiano.
Parte IX
Acordei hoje com seu gosto impregnado entre minhas coxas, baby!
Não que estivesse aqui para tocar meus devaneios ou dispersar angústias antigas num tempo tão ido, mas pela mão gelada de outro que me tocara fundo sem mesmo me conhecer.
Sempre deixei claro o meu desgosto por acordar cedo demais!
Não por suas mãos frias que se aconchegavam entre meus regalos mornos e carcomidos, não pelos olhos inchados pelo porre da noite anterior, nem tão pouco por minha falta de humor matinal.
Despertar era algo maior que isso, um não querer ver, um asco precoce da rotina de fingimentos e consternações.
Cedo ou tarde experimentamos uma das piores sensações humanas, a rara certeza de estar só e de não ser útil ou vital para algo maior.
O simples abrir dos olhos é mais assustador do que os becos mal cheirosos ou as navalhas presas ao pescoço ao ser currada.
Mas nada pior que ter dois olhos esquerdos e a deformidade de não me adaptar.
Parte X
A única constância é esse desespero, baby!
Mesmo as lembranças que vez ou outra me levam ao Colégio Diocesano, onde o toc-toc apressado dos sapatos envernizados e o sussurrar pelos corredores soavam pecado, não me deixam esquecer que desde o começo o impulso era o de me jogar contra os muros.
Os uniformes finamente engomados, as gravatas azuis como as saias e meias ¾ brancas revestiam esse desespero. Nem conhecia ainda as ruas da cidade baixa, muito menos o porto, mas naqueles dias de calor e febre, eles já chamavam por mim.
Tudo que fiz é embebido desse sentimento que me arrasta para o chão, baby!
Alimento-me do erro que prolonga minha existência, embora sinta que esse manco ético aumente ainda mais o peso de ser livre.
Já estou ancorada aqui há alguns anos e as ondas do cais do porto vêm me assombrar nas noites quentes.
Nunca gostei das casas que morei, nem mesmo essa que resido agora, grande demais, cheia de luxo e tão fria. Mesmo o nosso apartamento, decorado com um colchão mofado, caixotes e mesa de tapume, parecia-me luxuoso demais.
Nasci para as sarjetas, portos e pontas de rua!
Por quantas vezes fui pega escalando muros, quantas vezes fui surpreendida na ala masculina do internato?
Nem me lembro mais!
Já esperei e esperam muito de mim, não estou à altura de esperas e creio que foi um dos poucos que nada esperou de minha parte.
Cobram-me um preço alto demais por escolhas equivocadas, sofro por não me encaixar nas necessidades alheias, mas nem por isso desisto de ser quem sou.
Tentei, por muito tempo, vencer esse sentimento autodestrutivo que toma minha rotina desde que me entendo por gente. De me trancar com meninos nos banheiros masculinos no colégio e até me deitar com desconhecidos.
Lanço-me contra muros embolorados e densos, construídos por outras pessoas para conter o inevitável, para deixar de fora o que seja constrangedor.
Nem sei o quanto me estraçalhei, sem tirar um tijolo alheio do lugar!
As minhas vontades tiraram-me o uniforme, as meias ¾ e as saias plissadas que não me importunavam tanto. As camisas brancas e a gravata incomodavam, oprimiam-me o peito, apertavam a garganta, não me deixavam respirar.
Soava-me castrador a imposição do igual, uniformes, rotinas, contratos e hora marcada são fivelas de camisas de força.
Sei de meus pecados e não os ignoro, embora os julgue menos pesados do que não saber definir de maneira simplista onde me perco e porque desisti dos contínuos esforços para mudar minha atitude.
XI
E pensar que foi tudo tão rápido, a ponto de não me dar conta de que saborear pequenos momentos vale mais que uma vida inteira de esperas inúteis.
O automóvel ia a mais de cem por hora, nossos corpos a mil e seu membro em minha boca, e aquilo era tudo que desejara além da adrenalina da velocidade.
Quando os navios ancoravam no porto, corria como criança ao encontro do cais, a meu modo enchia-me de alegria ao vê-los aportando, pois era a possibilidade de te reencontrar.
Evitei a melancolia nesses dias solitários e frios, em que a geada encobriu as alamedas e matou alguns mendigos. Só agora percebo que nos amávamos, mas sempre é tarde para rememorar e quase dói.
Retiro pele sua sob minhas unhas e sei que carreguei mais que isso, o cheiro de maresia permeia meu hálito e dilata minhas pupilas.
Quando esbugalhava os olhos e me dizia: “é só sexo, baby” e eu sorrindo repetia: “sim, é só sexo”, alguém mentia.
Enquanto os neons inconstantes refletiam em nossa parede nua, chamando para a boite Le Burlesque Noir, latejávamos em fúria grotesca.
E quem ousaria dizer que foi tudo um engano, baby?
XII
Ao caminhar distraída pelo centro, numa manhã qualquer, vi um bêbado caído na rua, com a cabeça recostada no meio-fio, senti vontade de levá-lo para casa, como fez comigo!
Lembrei-me de quando fugi do colégio, sem ter para onde ir, numa noite fria e sabendo do castigo que receberia me sentei na calçada e chorei. Muitas pessoas passaram por mim e só um bêbado todo sujo e rasgado veio me perguntar se eu precisava de ajuda. Um bêbado que encontrei na quinta esquina, que teve a gentileza de querer saber de mim, poderia ter tido medo, poderia ter gritado e corrido, mas não tive nenhum receio. Olhei direto nos olhos dele, já enxugando minhas lágrimas e disse: “não quero voltar!”
Ele sorriu e me disse: “nem eu, nem eu!”
Contou-me de sua saga na cidade, de seus sonhos caipiras, em dado momento a história dele começou a se parecer com a minha e acabamos bebendo na mesma garrafa e fitando as luzes que passavam por todos os lados. Com ele esqueci-me do frio, da fome, do medo de ser castigada e vimos o dia amanhecer esverdeado e quadrado como o fundo da garrafa vazia.
XIII
O que acaba comigo é a realidade, baby!
A verdade sobre os ombros dói mais que os golpes da palmatória e ainda trago marcas desses golpes em toda extensão da alma. A realidade arde bem mais que mãos depois do castigo!
Por muito tempo me enganei inebriada pela inocente certeza de ser única, especial, insubstituível.
Mas ao comprar meias-finas entendi que não fazem apenas uma e sim milhares delas, para mulheres que por algum tempo têm o mesmo gosto, vestem o mesmo número que eu!
O que me diferencia das outras são esses olhos enormes e agateados, vêem longe e atraem rápido demais!
Nunca quis esses olhos, nunca quis olhar as coisas com esse jeito de cachorro-do-mato, como quem assalta o galinheiro com prazer e foge para não ser apanhado.
Vejo as coisas como são e não quero encarar, desejei um filtro que me protegesse dessa dor nos olhos e não há óculos escuros que me livrem da verdade.
Recordei-me de uma noite em que me perguntou por que eu pedia para me foder com a força que tivesse e naquela época não tinha a resposta.
Hoje tenho.
O que não dói, não machuca, não penetra fundo e não rasga, não é real, baby!
XIV
O engraçado é querermos colocar no outro a culpa de nossos defeitos.
Não sei bem porque meu avô materno era meu ídolo, acho que por um tempo o amei mais que ao meu pai. Talvez por ele ser muito permissivo comigo, deveria ter me posto freios antes de eu desembestar!
Sinto que aquela frase foi pior do que ser estuprada ou cuspida por um estranho!
E acabo retornando àquela padaria cada vez que tenho que escolher algo.
Carrego o vício de não saber escolher, aliás, o mal é mais grave, não escolho nunca, dou-me apenas o direito eterno das pequenas dúvidas e das grandes desistências.
Minha inocência foi perdida ali, no meio daqueles doces, com o cheiro de baunilha no ar!
Para mim não era apenas escolher um e sim abdicar das infinitas possibilidades contidas em cada opção desprezada.
E a farsa continua e se repete como ciclos de sofrimento absoluto, eu me embriagando e seguindo caminhos perigosos de desistência.
Meu avô sussurrou-me ao pé do ouvido: “você pode escolher o que quiser, minha linda!” e assistiu inerte aos meus olhinhos pedintes e desorientados e não alcançou o mal que me fez!
Ah, Kerouac, ali começou minha saga de vícios e insatisfações!
Ah, vovô, ali descobri o que era livre e quão difícil é escolher!
XV
Tive outra crise de bulimia nervosa, doença que não me perturbava desde os treze anos.
Naquela época não entendia e nem os médicos sabiam o motivo das crises. Mesmo com fome, meu corpo se negava a segurar qualquer coisa que comesse.
De forma inconsciente, me punia por não fazer todas as coisas que tinha vontade. E num ato de revolução berrava com dores descomunais, nenhum remédio me curou! Ardi em febre por sete dias, a pele latejava entre brotoejas que estouravam feito a verdade que explodia por dentro. Insatisfeita com a vida que me impunham, sentia nojo de minha imagem e de tudo que representava para aqueles que cobravam algo de mim.
Ora, eu tinha tudo que uma moça poderia querer! Vestiam-me nos mantos da vitória social burguesa, formavam-me num colégio católico e iam me casar com um político, ou um advogado, um médico, quem sabe. Ele viraria meu dono, me sodomizaria e eu viveria ali apenas pra servi-lo na cama e na mesa, a mucama de luxo!
Só podia vomitar, regurgitar a sopa imposta, servida como a realidade intragável que era minha vida.
Ansiava por um corpo, como o da Irmã Clotilde clamava pelo de Padre Bernardo sob o hábito. Ah, era aquilo que eu desejava, a expressão de felicidade incontida, o grito dela abafado pela mão dele, o prazer escondido na capela do colégio, só queria aquela febre!
XVI
Por conta de minha crise minha mãe veio me visitar, sabe que não gosto dela!
Deve se lembrar de quando ela apareceu, logo que me levou para morar com você?
A cara de nojo que fazia ao olhar as nossas coisas e aquele lencinho ridículo que colocava na cara, como se tudo estivesse contaminado e fétido!
É mereceu o apelido que deu a ela: “Dona Pedra”!
Vi diferenças nela dessa última vez, tinha os cabelos bem mais acinzentados, os olhos estavam caídos, não eram mais aqueles olhos superiores e altivos que ostentava no rosto sisudo, sobre aquele pescoço longo, quase vi meiguice.
Trouxe algumas roupas dela que não usava mais, de bom tecido, dizia que era pelas cores, não ficavam bem em uma viúva. Como sei costurar, fez questão que as reformasse para mim e citou as tais grifes que tanto deu valor durante sua vida inteira.
Estava mais entusiasmada com os vestidos que eu. Observei o cenário com atenção, uma felicidade incontida parecia outra pessoa, não a minha mãe. Por um breve momento vislumbrei a possibilidade das pessoas mudarem.
Em certo momento me perguntou se havia visto minha caixinha, como não havia visto, procurei no meio de algumas peças de roupa que sobraram na sacola. Sim, reconhecia a caixa de prata, meu pai trouxe como prêmio de consolação por esquecer o dia de meu aniversário de nove anos.
Ela me contou que sempre que olhava em cima da penteadeira lembrava a cena de meus irmãos destruindo o jardim e que eu catava as migalhas das flores guardando todas nessa caixinha.
Veio-me a cena tal qual acontecera: eu catava os retalhos da destruição de meus irmãos e falava baixinho vou te curar, tudo vai ficar bem!
Como se existisse algo que pudesse desfazer o esgarçamento das flores despetaladas.
XVII
Por vezes me pegava com o crucifixo que me deu entre os dedos, não para rezar, apenas pra ter a sensação de quando o amarrou em meu pescoço dizendo que o que nos enforca é a fé.
Todos os cigarros que acendi desde então foram em sua homenagem, não pelo vício, mas pela carga similar a sua, entram em autocombustão por trazerem pólvora na veia.
Estou sozinha desde que me entendo por gente, já tenho noção desse estado faz algum tempo e não ter alguém que confio para desabafar me corta ao meio.
Nunca trouxe a leveza das plumas comigo e ao caminhar com sapatos altos arrastava-os no asfalto até perderem a sola. Às vezes invejava as mulheres que passavam pelos estacionamentos no centro da cidade, escondidas em seus vestidos finos e em seu caminhar elegante. Para ser elegante é preciso ser leve e minha consciência pesa mais de meia tonelada, baby!
Meu consolo era me ater à sua presença, ouvir suas histórias, compartilhar de seus amigos, assim as angústias se calavam, mas não me bastava aquilo tudo, nasci para magoar.
Quando tranquei pela última vez a porta de nosso apartamento esqueci-me de como é chorar, travo a mandíbula e feito animal coagido entrego-me ao silêncio.
A escrita tem sido uma válvula de escape, a única, dissolver-me em palavras alivia o peito e ainda assim, feito Sísifo carrego a pedra de erros nas costas, sem ter a quem recorrer.
Não trago mais o crucifixo que me deu de presente, gostava de trazê-lo entre os seios para me lembrar da maneira que passeava com sua língua entre eles. Precisei penhorar a jóia para não passar fome. Ainda não consegui resgatar nem a jóia e nem a fé!
XVIII
O caso é que éramos muito jovens e eu adorava me exibir para você, usar o charme que tinha para ludibriar trouxas e me gabar depois! Engano-me dizendo que não sou mais assim, embora ainda queira arrumar alguém que trepe comigo pelo menos duas vezes seguidas antes de pegar no sono e me trate com o desprezo que encontrei nos becos da cidade baixa.
Chove agora depois do calor infernal, aqui não existem as quatro estações e creio que se Miller descesse aos trópicos descobrisse a real intensidade de seus escritos sobre a carne castigada pelo calor, ele seria menos voraz.
Serão dias de chuva sem meio termo, tudo é suor e afetamento, pois não há remédio para esse meu estágio desgastado e febril. Quem dera tivesse só vocação para o martírio, o clima já derriçaria com os dias úmidos e mofados e as noites seriam devotadas apenas para o prazer.
Em março o inferno é aqui, não é branco nem colorido, é marrom acinzentado. Queria estar chapada, sob o efeito de um barbitúrico qualquer que me afastasse dessa sobriedade nula e cortante.
Como já disse estou tentando me endireitar, sentir o prazer como a maioria das pessoas: três refeições ao dia, dormir um pouco mais, não pensar muito e sentir cócegas.
Mas ainda penso e o pensamento pesa, lateja e tira o sono, baby!
Enganei-me por muito tempo, pensando que a satisfação reside nas coisas e descobri que o prazer está além do objeto.
Mas sei também que se não beber, não fumar ou me enterrar em minhas pílulas não conseguirei prazer imediato. Percebo que não enganei ninguém, que os trouxas ansiavam por ser enganados para terem o que queriam de mim, eu era só um objeto.
XIX
Conseguia ficar horas velando seu sono, como se uma loucura me tomasse os olhos e trouxesse-me a quietude quase vazia do contemplar.Foi minha religião por muito tempo, um recanto onde ainda me encontrava e voltava a me perder.
Nunca foi um ser abstrato ou um borrão desses que se prende aos sistemas impostos, nem tão pouco era um observador acocorado fora do mundo. Era a realização fantástica de tudo porque eu não construí.
Não tive nada de verdadeiro, nada de real antes de você. Alienei-me de meu fracasso para viver o seu entusiasmo, as suas histórias preenchiam minhas lacunas de forma pitoresca e ácida.
Sem você, eu era o retrato da miséria pessoal, nada mais que o suspiro do oprimido, desânimo de um mundo sem sentimentos bons.
Enquanto digo isso me dou conta de que a felicidade é ilusória, não passa da exigência utópica que cultivei por muito tempo.
E seu apelo era para que eu abandonasse as ilusões a respeito da minha condição, era o apelo para abandonar uma condição que precisava de ilusões e ainda quero me enganar.
A realidade arrancou as flores imaginárias, como fizeram meus irmãos anos atrás. Não para que eu suportasse as coisas sem fantasias ou consolo, mas talvez para que não me iludisse que tenho o poder de curar tudo.
XX
Esforcei-me ao máximo para não falar em certas lembranças com você, mas como de algum modo tudo que escondemos vem à tona na pior hora possível é chegada minha hora. E não há uma maneira mais fácil e menos dolorosa de fazer isso, baby!
Saí de nosso apartamento naquele setembro fatídico acompanhada, bêbada e consciente de minha condição. E imagino que se ficasse você se afastaria de mim aos poucos esqueceria o motivo de ter me tirado daquele beco e talvez tudo o que vivemos dali para frente seria um simples prelúdio. E isso seria insuportável para mim!
Preferi trazer comigo essa imagem irretocável de quase-perfeição.
Parti dona de mim, trazendo uma dor lacerante e um filho seu, que eu não queria, dentro de mim.
Por um tempo usei o álcool como se fosse prescrição médica, servia-me como um anti-realidade que me curava da agonia mental causada pelos breves períodos de sobriedade.
Rejeitei até o fim a ideia de ser como minha mãe e injetei a morte de seu filho na veia, deixei que o cortassem e o levassem de mim, sem piedade, mas não sem dor e culpa.
Agora depois de alguns meses sóbria vejo as coisas com uma clareza insuportavelmente cortante, como que tivesse recebido um dom maldito, o da clarividência. Não aquela que de ver os mortos ou ter pressentimentos ruins. Vejo coisas, lugares, pessoas que parecia nunca ter visto antes. A luz tem um tom branco invasivo, já não é amarelada e fosca, descobri que a paz segura que procurei por algum tempo não existe. Vejo que as coisas e lugares que desconheço são parte de um passado ébrio e nauseante que vivi e que me persegue, mesmo que eu o aborte todos os dias.
Sinto falta do que não fomos.
XXV
Passei os últimos meses tentando evitar, sem sucesso, qualquer sensação que me remetesse a você. Mas não consigo separar a consciência diária dos acontecimentos que me trazem lembranças suas.
Moro num lugar quente, muito quente e o calor enlouquece as pessoas, creia-me!
Queria sair correndo, sem roupa no meio dessa gente que demonstra tanto desprezo por mim. Se estivesse ao meu lado, talvez tivesse a mesma coragem de outrora.
Hoje o máximo que poderia fazer seria compor um ensaio sobre como o derretimento das calotas polares, o aquecimento global mudam o comportamento cognitivo das pessoas. Rindo sozinha e imaginando alguns graus a mais cozinhando os miolos de alguns! Foda-se, não é disso que quero falar, morrerei logo, independente do clima desse mundo de merda!
Surpreendi-me por não estar magoada pelo fato de descobrir amor nesse peito que já julgava morno e entregue ao movimento marítimo do vai e vem das marés. Sei que nesse momento brota um sorrisinho cínico, de canto de boca, bem aquele que esboçava quando tinha razão e eu teimava. É verdade, tenho que me retratar, aprendi que o querer bem é melhor assim, vivenciado dessa maneira tosca e hipócrita que você vivenciara há décadas atrás. E acabei me aconchegando nos braços de alguém que me diz o que quero ouvir. É o maldito vício humano, baby! O apego à mentira doce e afável para sobreviver ao caos egoísta que a realidade nos impõe.
Fugi desesperada de nós e dessa realidade da maneira mais segura que encontrei, tentando me libertar e iludida nessa utopia me amarrei a alguém muito diferente de você.
Sei bem que ressaltava as vantagens de sua vida sem vínculos, que no frigir dos ovos era como a minha antes de me tirar daquele beco, mas sou uma mulherzinha, Jack, no fim sou apenas uma mulherzinha, igual a todas as outras de minha espécie. Eu só queria estar a salvo, encostada num corpo quente, ter alguém para dividir um teto e me contar mentiras doces. Estive cega por um tempo e só consegui alcançar-te quando já estávamos distantes demais para reatar.
“ ─ É tudo mentira, baby!” – ainda me lembro dos seus olhos quando me dizia isso.
Agora que tenho o que sempre quis, falta-me algo, falta-me tudo!
XXVI
Nunca fui grande coisa, baby!
Uma menina quieta, uma moça que gostava de sexo, uma mulher debochada e hoje mais calada do que gostaria.
Fui muitas mulheres, mais do que pude suportar em mim, mais do que pude controlar e independente de quem fosse eu era sua!
Quem dera eu me amasse na mesma intensidade que me entreguei a você!
Quem dera tivesse faro para os negócios como para homens errados!
Corri o mundo em busca de aventura e um pouco de diversão, tentando esquecer os meus e quando podia tripudiava, ria, debochava de suas vidas medíocres e insossas, devotadas ao convívio social brando e poético.
Cada vez que caía de bêbada, que me entregava a um estranho ou despertava em alguma esquina fria, era para eles que devotava meu primeiro pensamento. Por vezes até me perguntava o que estariam fazendo naquele momento.
Os quitutes que minha mãe exibia pela manhã soavam-me afronta. Como poderia perder tanto tempo comigo, justo comigo que a desprezava tanto!
Acho que minha revolta nascia ali, por entender cegamente a fuga de meu pai, por não suportar aquela mulher sem atrativos, devotada a tarefas menores.
Meu pai era um porta-retrato sobre a penteadeira dela, que me olhava todos os dias enquanto eu me penteava. Quantas vezes ele me ouviu chorar e guardou minhas confidências, conselho nunca deu, mas esteve mais presente do que minha mãe!
Choveu muito por esses dias e as marés estão mais altas que o normal, o mar quebra mais pesado que nunca. Ontem o mar invadiu a lagoa, a praça, levou carros, ilhou bairros e matou pessoas. Como se algo precisasse ficar cheio e sujo para que eu entendesse que não são apenas faltas que me fazem mal, os excessos também me afetam.
Acordei encharcada de suor e sangue, o suor é a saudade que tenho de minha mãe e o sangue é por saber que metade de meu DNA é aquela fotografia sobre o móvel.
XXVII
De onde vem essa sensação de que as coisas são tão iguais e que mesmo assim ainda posso sentir falta delas?
Algo que me aflige todos os dias são essas molduras que suportam os mesmos quadros há décadas nessas paredes, o mesmo relógio, as fotografias sobre o piano.
O par de chinelas e os elos que se arrastam de madrugada pela casa em silêncio, minha casa hoje se parece com a casa de meus pais. Cortinas empoeiradas, sofás confortáveis para que as pessoas possam cochilar neles, armários lotados de coisas inúteis e o velho silêncio.
Esse pesa e assusta mais que os de outrora, ainda que não tenha mais o impulso de liberdade desenfreada que cultivei, ainda que segura e distante dos atentados invasivos, sinto-me aflita.
O portão range mais que de outras moradas, o calar da noite é mais intenso.
Nossa vida tinha mais música, mais soul, baby!
Já vi mais sentido nas coisas e meus copos eram mais vazios.
Hoje é a incansável xícara de chá sobre o pires e um guardanapo para sufocar o atrito.
Os sons e o atrito não são permitidos por aqui, Jack! Todos dormem, o silêncio é brutal e nauseante.
Por vezes, o barulho de carros acelerados rasga as madrugadas, meu coração dispara na lembrança nossa.
Se não fossem esses rompantes que cortam as noites e minhas esperas vãs, não sei o que seria. Pobre de mim que já fui tão irreverente e soberba, agora entregue ao desespero das noites de insônia.
Sou um arquipélago, como o relógio de sempre na mesma parede mofada avisa a cada segundo que apodreço, os retratos sobre o piano não me deixam esquecer isso.
Sou um morango embolorado e minha mãe dizia que um morango estragado dentro de uma caixa contamina todos os outros. Já estou concordando com ela, quase a entendo...
O que mais me faz falta são os bigodes desalinhados de meu pai.
Deixou-me palhaços e bonecas de louça, mas o colo que tanto quis foi para as putas em seus passeios noturnos, ou para empregadas que o visitavam no sótão durante suas longas noites de insônia.
Deparo-me com a dor de ser órfã, com mãe viva, sem filhos, sem um lugar que me pertença, sem paz.
XXVIII
Todos os dias se tornaram quarta-feira de cinzas!
Não há palhaços ou alegorias finas que durem mais de três dias!
Acho que me esqueci ou relutei demais para banir essa fantasia de minha vida, como um elmo que depois de encontrado é difícil devolver para a terra.
Ou aquelas máscaras venezianas que teimamos em pregar em portas e paredes velhas para que nos lembrem de que somos falsos!
Quem sabe mereça ser esquecido, como cadáver jogado em vala comum, indigente!
Guardo você por tempo demais, um relicário que me faz lembrar o que sou, o insólito de solidões mais profundas.
Quisera ter a coragem doutras eras e ser-te ingrata., mas desaprendi!
Mas não há como esquecer sua mão a me puxar da sarjeta, o colo nas noites frias, o silêncio das horas mais certas!
A sua estadia conturbada me deixou o pago de sabedoria e força.
A idade também tem suas recompensas, seja a proximidade do fim ou o aprendizado lacerante.
Meu desejo hoje é deixar de pensar em tudo que não fomos e esquecer o cansaço. Tentarei voltar pra mim, embora acredite que nada é esquecido.
─ O passado é Medusa, baby! Não me verá olhando pra trás, não quero virar pedra!
Carrego seu querer por mais tempo que suportaria qualquer outra coisa, não sei abandonar você feito alegoria e seguir caminho, descobri em hora tardia que não há liberdade, são poucas as escolhas e por mais que me prive desse frisson de lembrar mais marcado em mim está.
Sim, eu sei Jack, sonhei mais do que tive e brindei os sorrisos, me livrei das derrotas estando ao seu lado.
Amar você em me odiar é remédio para meu caos interno, é quase solução.
Definho, pois a memória é bandida me faz enxergar melhor sob as linhas do não dito.
É o sufocar dentro de cada cigarro, evaporar a cada trago que bebo quem dera fosse fácil assim?
Faz três dias as cólicas do aborto de nosso filho me doem, três dias, todo maldito mês é assim.
Seria um homem hoje, se eu não o tivesse matado e talvez me apoiasse no meio desse labirinto. Talvez visse no olhar dele os seus olhos e me doesse menos a falta que me faz. Pior seria vê-lo como o flagelo culpado por ter te abandonado, sempre pode ser pior, baby!
....
Tenho o péssimo hábito de querer boxear com pugilistas mais fortes que eu, dessa vez desafiei Holyfield, um peso-pesado e eu estava de olhos abertos e sóbria, só podia mesmo estar querendo levar uma surra.
Jack, no fundo, sabemos o fim da história e não sei o motivo, mas a gente ainda insiste. Passei minha vida desistindo de tudo que era bom para mim. Achava que era autodefesa, uma tentativa de me proteger, mas sei que era medo, medo de enfrentar uma escolha, não sendo eu nem peso-pena, ou seja, sendo só uma mulherzinha que mal sabe bater!
Outro dia senti aquela coisa de novo, aquela sensação enganosa que nos ludibria com a frase: “vale a pena”. Mas sabe a voz de meu avô, sim ela voltou também! Mais uma vez ela me dizia: “vai se machucar”.
Ouço a voz dele só em iminência de perigo e na maioria das vezes fujo, mas deixei passar, sufoquei, mesmo de alguma forma sabendo que era verdade o que dizia. Até quando vou pagar para ver? Até quando vou poder pagar para ver? E é cada vez pior, querer pode ser bem pior do que se imagina, e não é uma piada, baby!
No começo ele só brincou comigo, como se eu fosse mesmo aquele João-bobo, ficou com pena, talvez. Chegou a ser doce e agradável, gentil, por assim dizer e foi quase um pás de deux o primeiro round! Quase respeitoso e tocou-me a luva, mas agora percebo que foi um teste, um estudo do inimigo, um deboche velado.
No segundo round, ouvi a campainha mais de uma vez, parecia que ela tocava dentro de minha cabeça. Foram as sequências de golpes e deixando bem claro que ele foi limpo, nem meio golpe baixo!
Jabes seguidos e alguns diretos e enfim um cruzado!
Nocaute, sem ao menos eu ouvir a contagem. Tenho gosto de meu sangue na boca e ainda me dói, mas já estou farta do bordão da dor, não é baby, nem ele me é suficiente!
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Sabe do pavor que tenho por certos insetos, não é baby!
Deparei-me com baratas, pernelongos e aranhas por muito tempo.
As coisas são diferentes hoje, quase não os vejo mais, nem sei se porque dedetizam ou porque minha visão está cada vez mais fraca.
Outro dia vi uma aranha espreitando m minha sala, ela se esgueirava pelo tapete se aproveitando da pouca luz.
Sou ruim, Jack, muito ruim. Observei a pobre fazendo o trajeto pela extensão de todo o tapete, mais ou menos uns dois metros e meio. Acendi um cigarro e esperei que ela chegasse bem perto de meus pés, então a queimei com a bituca do cigarro.
Somos mesmo insetos nas mão de outros seres humanos. Vulneráveis e à mercê de suas vontades cruéis. Sei que serei exterminada como a aranha que matei.
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O que a água e sabão não lavam é o sentimento, baby!
Sinto-me suja como antes, do mesmo modo de quando me arrancou da sarjeta!
Não consegui pensar em maneira melhor do que acabar com tudo do que envelhecendo. Criando rugas e manias senis, chorando meus mortos e me olhando sem ver nada de mim. Sábio foi você que morreu cedo, que se entregou ao caos mundano sem freios ou estacionamento.
Penso mais no passado que no presente, quando não são os brancos, buracos negros a me perseguir sem trégua. Riria de mim se eu dissesse que não lembro das suas fuças, pois não lembro.
Recordo-me do cheiro de cigarro que trazia em sua jaqueta de couro surrada e do cheiro daquela pomada que você usava para tudo, desde desodorante a lubrificante, você cheirava Minancora.
Talvez o suplício maior seja pensar nos vermes, pobrezinhos... Terão que acabar com meus restos, se é que lhes sobrará algo. Pense em alguém que odiava calcinhas, rendida agora em fraldas geriátricas, se houver algo pior que a vergonha de se borrar, eu desconheço.
Você sempre cheirou bem, baby!
Mesmo os cigarros, a maresia e a Minancora, tudo vindo de você tinha cheiro de vida.
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As esperas são pequenas mortes, baby!
Perdi a conta de quantas vezes esperei algo extraordinário acontecer e acabei me vendendo para manter nossa relação, ovos e bebida.
A dimensão das coisas não me assustava tanto, sei que não me cobrou muito, mas nesses tempos que só tenho a mim, vejo que pode ter custado mais me tirar das ruas e me manter limpa.
Nunca aprendi a usar as palavras como você, sempre lidei melhor com a bebida.
Se algo me afetava eram as garrafas vazias que ouviam meus soluços de gargalo.
Quisera eu, baby, uma mulher que nasceu nos melhores berços e acabou nas ruas, saber me expressar tão bem quanto você.
Mas as coisas não são assim, como queremos. Tudo foge ao controle e só agora entendo isso.
Devotei minha vida a um sonho, quis a liberdade e provei por alguns anos amostras dela e no restante do tempo vivi das lembranças dela!
Não fiz a conta de quanto paguei, ou de quanto pagou.
Só agora tenho noção que foram os melhores tempos de minha vida.
Enfim, estamos quites!
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Hei de redescobrir a fórmula para calar os gritos que me tomam nesses desertos lotados de personagens que já vivi. Sim, talvez afogá-los em caos íntimos, naquela solução menos dolorosa para beber, que há tempos me ensinara.
Reaprender a secar esperas, dormir o dia inteiro e vagar à noite.
Por um tempo era o poker, hoje é o remanescente jogo de paciência que gira em meu baralho inerte.
Cansei de reclamar do passado e me comportar como um ser caquético e irresoluto.
E vem aquela voz mais ríspida que manda calar a boca e beber até desmaiar. Tudo ao mesmo tempo agora e em alta velocidade!
Pois que se for para chocar contra as coisas que seja para despedaçar, baby!
A voz maldita ecoe dissonante, a junção das falas de vários dos homens que passaram em minha vida, cuja visão da mulher perfeita é a que geme de prazer, aquela que não fala de dores, não chora e só sorri permissiva.
Cansei de ser mulherzinha, estou velha demais pra isso, Jack!
Quero ser massacrada pela angústia mais torturante e agora abri todas as minhas comportas. Não suporto mais o desistir!
Não me doei mais por altruísmo, creio que é o que me falta, me dar a alguém que precise de mim e nessa hora não me sinto essencial.
Esse lugar me passa, tem luxo e zelo em excesso, parece frágil e imexível e isso me incomoda demais.
Outro dia vi um menino maltrapilho, sentado bem em frente ao meu portão, saí e o olhei de lado. Pés sujos, mãos entrelaçadas, trazia um cheiro ocre de abandono, seus olhos miúdos e fixos não me perceberam, parecia devotado ao chão, tive medo que ele me olhasse.
Não sei dizer o motivo, mas tenho medo de tocar o que desconheço e eu não era assim.
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O que nos afasta da realidade é a civilidade, é o egoísmo, baby!
Não direi que fujo à regra, querem seu melhor, mas não dão nem uma migalha de si.
Quero o melhor dos outros, mas me guardo em retaguardas para não me ferir gravemente, salvo raras exceções.
A civilidade é o oco do mundo, compram-nos presentes caros, fantasias baratas e reduzem a existência a um espetáculo burlesco.
─ São os tópicos! É o carnaval, baby! - como você bem dizia - Uma alegoria transitória que se desfaz em poucos dias!
Nos deixamos envolver com a música, com a festa e a dança e esquecemos que a pintura e os disfarces não duram.
Ainda admiro você, Kerouac, tinha uma sinceridade crua, quase agressiva, mas não me decepcionava, nunca me decepcionou.
Tinha a capacidade de me foder sem palavras doces e de dizer ainda me penetrando:
─ É só sexo, baby! É só mais uma para mim! Não se apaixone!
Por mais que doesse escutar aquilo, naquele momento, eu segurava firme em seus braços e implorava por mais! Isso de certa forma me fez mais forte.
E não consegui odiar você por isso, não consigo te odiar!
É fácil cobrar o que não se tem, o que se desconhece, o que te privam.
Difícil é ser fiel aos seus princípios e ter coragem de confessar o inconfessável.
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Num dia comum trouxe-me um relógio e uma garrafa de vodca. Mimo perfeito para uma escritora decadente. Um me faria lembrar do tempo perco engendrando filosofias maiores que meu entendimento pode alcançar, o outro para esquecer o resto.
Agora vejo que acabo falando feito você, Jack, com aquele ritmo erótico-sarcástico, que imprimia em suas falas e que fez com que eu me apaixonasse tanto.
Sim, a palavra esgarça tanto meu sentimento que me comovo e me encho de piedade a me ver ainda tão ignorante e deslumbrada.
Por estar distante de qualquer pessoa que me entenda ou que eu possa contar tudo isso sem que pareça uma ladainha sem começo e sem fim.
No fundo, acredito que a maioria de nós pousa a cabeça sobre o travesseiro querendo dizer algo e não tem coragem.
Se abrir é perigoso, é se desarmar. E se ver frágil ao lado da pessoa com quem divide até a escova de dente é pernicioso. Temos pesadelos que não ousamos nem confessar a nós mesmos.
Sim, o mais velho e ancestral companheiro do homem é o medo da loucura, isso é o que aflige a todos, inclusive a mim, Jack!
Lembro-me do dia que me disse:
─ Você é só mais uma, baby! Não se apaixone por mim!
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Suas dúvidas me alimentavam e eu já imaginava onde isso tudo ia dar, não sabia o caminho que percorreríamos para isso, mas não poderia ter outro desfecho que não esse.
E quando me dizia que estava com outra mulher, mas não suportava a ideia de eu andar com outros homens, mesmo que isso tenha nos dado mais do que tivéramos até ali. Esse seu machismo desavergonhado, a desculpa perfeita para me fazer ciúmes e me trazer de volta pra casa.
Vejo que meus passos eram e ainda são rumo à autodestruição, muitos tentaram me salvar, mas eu não presto, não presto.
De certa forma me via refletida em seus olhos negros, pedintes, aquele desespero de quem mal sabe dizer que ama e que repele, expulsa e pune quem tenta.
Como meu avô dizia:
─ Venha minha menininha, ver o boi antes dele ir pro abatedouro, espie só o desespero no olho do bicho!
E eu, mesmo sem saber via no olho do boi o meu desespero.
Sou um amontoado de mentiras doces e de realidades desastrosas.
Sou construir, alimentar e depois destruir para viver à míngua, à margem!
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Somos seres sugestionados, escutamos histórias que nos repetem desde a mais remota civilização, somos convencidos que o caminho do meio, nem o esquerdo ou o direito. O morno, nem o quente ou o frio, nem o bom ou o ruim demais, o meio.
Esse é o caminho para o bom cristão, pois a luxúria, a gula, os excessos são pecaminosos e sujos.
O que nos sobra faz falta para alguém, os desperdícios particulares são mínguas alheias, como se isso fosse mesmo verdade.
Por isso não sigo regras, descobri cedo que desmedir os sentimentos e deixar-se à revelia dos excessos é a melhor maneira de se sentir vivo.
Os amantes jovens brincam de esconde-esconde, aquela premissa de correr na frente e se camuflar, para se misturar com a paisagem e não ser encontrado e no fim se atingirem com sustos. Pouco muda durante toda a relação, as confissões de amor desmedido, as pequenas punhaladas que fazem sangrar de alegria e de dor, que trazem dor, culpa e dúvida de sermos merecedores desse sentimento.
Os ciclos viciosos que não se quebram nunca. O eterno esconder, e cada vez mais e cada vez mais nocivamente.
A pessoa com quem dividimos nosso cotidiano é a que mais nos desconhece.
A loucura também nos é desculpa parar fugir de tudo que nos aflige e nos atinge em cheio. Tudo que não se entende ou não quer explicar é loucura.
Quando ganhava a vida nas ruas sabia bem o que era felicidade, era o que dez noites de sexo incessante pudessem comprar, ou o que me sobrasse delas.
O inferno e o céu estão muito próximos em ideologia e nenhum deles nos salva.
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Aprendi desde muito cedo que ser mulher não era muito bom. Vovô me dizia quatro vezes por dia, cinco vezes por semana:
─ Use seu charme como mulher e enfie a faca como homem!
Essa foi uma lição que me valeu muito!
Mas mesmo assim sou fragilizada pelo sentimentalismo, alimento o querer bem e me dou mal.
Não se gabe por ter salvo minha vida, não foi o único!
Meu avô preservou minha sanidade durante toda a fase mais difícil que vivi e me avisa ao ouvido até hoje quando algo pode me machucar demais.
Você não foi o único, trago uma cicatriz profunda em meu ombro esquerdo, de uma noite marcada com sexo, suor e sangue. Quem salvou-me foi um travesti mais esperto que eu.
Enfim, os homens são mais espertos que as mulheres, mais safos e sinto-me uma tola, traída e salva por eles.
Aliás, acho que as fêmeas não passam de joguete nas mãos masculinas, moeda de troca, de sedução e de poder.
─ Um sorriso por uma moeda! – dizia o vovô.
Aprendi na marra uma lição bem mais perversa e tracei minha vida sobre o inverso do que aprendi.
Quando fiz o caminho contrário ao que meu avô me ensinou quando criança: uma moeda por um sorriso, entendi a essência humana.
Agora é aprender até quando pagar para ver, ou fazer com que paguem para ver. Mas essa não é uma lição tão simples quanto a primeira. Se houvesse um limiar do suportável, como ter consciência de quanta verdade podemos suportar?
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No fundo, você não passava de um intelectual suburbano decadente!
E eu sou uma alienada, isolada, sem ter para quem contar o que se passa, sem que tudo pareça uma ladainha sem fim.
Um comentário:
Tava linda ontem no teatro, fica tudo dourado quando entra, e esse texto então, lido em voz alta, arrastou minha tristeza.
Foi bom colocar seu blog lá, assim não se perde.
Vanessa Silva.
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