quase Hemingway
isso foi só no começo, enquanto escrevia os oito capítulos
iniciais. eram sensações ruins, não sabia bem se era ficção ou romance. alucinada,
vomitava um monte de palavrões. dizia: "Carlos, continue batendo!". e
ele respondia: "comprei botas novas!". depois de boas surras eu
fumava um pouco, esmurrava a porta do mobilhado e caía no sono. aquelas coisas
continuavam brotando da minha boca, a violência
era atraente para nossos corações atormentados. ele era parecido com
Hemingway, quem sabe um pouco melhor. abri a gaveta do meio e puxei o porrete,
guardado embaixo das calcinhas e bati nele com toda força, “enfia no rabo, com
querosene e coloque fogo, honey!”
expiação
amarrou pernas e braços, reforçando a condição eterna de
subjugada. a boca deixou solta, pois já não importava mais o que ela dissesse,
eram só palavras de um serzinho magoado e isso o divertia. reclusa não chorou
em nenhum momento ou implorou pela liberdade, não daria a ele essa satisfação.
vieram os outros e por falta jogaram pedras, é fácil ser pedra.
a ilha
havia uma certa zona de conforto enquanto se esqueciam da
friagem que trazia o corpo. naquela noite, depois de tudo que passaram, ambos
sucumbiram ao silêncio e se tornaram ilhas de um mesmo arquipélago. a letargia
era um sentimento novo e hora ou outra aprenderiam lidar com ele.
febre
a exatidão das coisas tirava-lhe o sono, e mesmo sem que
percebesse estava presa num labirinto lógico, que negava, para no fim cair nas
mesmas saídas óbvias de sempre. reverenciava os Best Sellers, os romances
baratos em grandes volumes, vendidos em bancas de revistas, mas não conseguia
aquilo que julgava maior e digno, escrever algo para ser lido com facilidade.
queria o fervor das putas, ser vendida em todas as esquinas e em qualquer canto
que a desejassem, mas era covarde demais para isso, então escrevia.
porta-retrato
sim, aquela era a melhor lembrança que trazia dele, um
sorriso exposto sobre a estante empoeirada da sala. era um troféu do fracasso
de sua mãe de mantê-la protegida de seus amantes, depois que o pai foi embora.
nada flutuava quando os três dividiram por meses aquele maldito quarto e sala.
o sorriso era denso, quase sem falhas, não fosse aquela pequena ruga
dissimulada que erguia-se no canto esquerdo da boca. tentou fugir, mas ele
descobriu o novo endereço e não deveria ter voltado a importuná-la. foi aquele
rosto que a esfaqueara, aquele mesmo corpo que ela fez questão de alvejar por
duas vezes, sem nenhuma piedade.
digressões
era mais que trabalho, a máquina de escrever, o barulho, o
ritmo frenético das teclas, o cigarro aceso entre os dedos ocupados iam se
tornando prisões para os dois. entre letras e paródias trágicas ela construía
seus personagens, sua vida e se sabotava nas entrelinhas. ele era um xucro, mas
conseguia rastreá-la nas pequenas atitudes. ambos eram arrogantes obstinados,
atentos e criavam distâncias que brotavam entre rotinas solenes.
asas
por um momento olhou em volta, esquecendo-se do passado e
nem confabulando um possível futuro. vislumbrou a luz que invadia a fresta
entre as cortinas cansadas. as partículas de poeira pairavam sem culpa e caiam
sobre o rosto de Carlos. ela sorria pela simplicidade da cena, ele jurava que o
olhar dela era por amor, eu sei que é só a fumaça de cigarro, sol e poeira.
simetria
todos eles se comportam assim em algum momento, fogem dos
sentimentos, como Hemingway fugiu. de certo modo preferiu enfrentar a guerra.
encarar outros homens armados parecia mais justo e menos complicado que olhar
nos olhos de uma mulher. aquela retina tinha o mesmo peso de mil trincheiras.
quantos já foram colocados contar a parede e fuzilados sumariamente por olhos
mais gentis que os dela.
móbile
os olhos brilhavam, ele bailava num ritmo próprio quase
alucinado revirava-se. ou seria apenas o vento, um frescor sob sua armação?
erguia o queixo para o alto como se orasse, mas só conseguia aquela expressão
quando me ouvia gemer depois de ser currada, a minha dor soava redenção. no
nono capítulo, ela revelava toda honra e toda glória ao deus príapo. Carlos
esquecia-se de suas dores e tornara-se Dom Quixote queimara todos os moinhos de
vento, galopava e gozava sobre sua Dulcineia.
cochilo
agora ele dormia o sono dos justos e ela o observava com a
atenção redobrada. bem que poderia escrever sobre ele, como duvidava de sua
retidão e como ele duvidava de sua sanidade. poderia contar da suavidade que
sustentava naquele corpo magro e infame, o quão obscenas eram as palavras que
ele proferia ao pé de seu ouvido. não era um homem excepcional e nem se
considerava como tal, não era sofisticado e estava bem adaptado ao meio que
vivia. mas se fosse definir seus predicados deveria esconder os escritos dele.
Carlos não era uma pessoa fácil e não aceitaria o estereótipo de qualquer
personagem.
mar
os olhos permaneciam inertes, pousados na imagem dele
enquanto dormia, mas despertou ao perceber que era observado. repousou a mão
direita sobre seu rosto, enquanto as lágrimas dela pingavam sobre ele. as
mulheres são sentimentais e preferia se calar quando não entendia suas reações.
ela não percebia que externava apenas uma ilusão. ambos sabiam que cultivavam
um determinado prazer , o de se machucar mutuamente de propósito. aquela
satisfação indescritível que sentiam ao desferir golpes certeiros um conta o
outro era o que os conservava juntos.
post-it
a insônia fazia ver coisas que nem sempre estavam ali, só
agora percebera que as anotações estavam úmidas e que havia mofo na parede.
escrevera a noite inteira ouvindo os choramingos de Carlos no meio de seus
sonhos, ou pesadelos, não sabia ao certo. as chuvas estavam marcadas na pintura
velha daquele apartamento suburbano. as unhas dele estavam roxas e as dela
roídas, quase que em carne viva.
a mancha
meu sangue ainda estava no lençol, não sentia mais dores,
mas os hematomas permaneceriam ali por mais dois ou três dias, antes de sumirem
completamente. a alma não cicatriza como a carne, não mesmo. passava das duas
da madrugada, os olhos procuravam uma figura horrenda e só encontravam Carlos e
a máquina de escrever silenciosa. talvez aquela fosse a verdadeira visão do
inferno.
caos
todo fardo é pesado demais e era o preço para vê-la sorrir.
o dia passou lento e Carlos estava exausto. por horas seguidas carregou sacas
de milho para o depósito. não suprimiu sonhos, talvez tenha sucumbido a eles. nesses
dias de realidade gritante e absurda expunha-se ao risco. imperava o desejo do
doentio sentia-se sem ar e com saudade de sua hipocondria.
escafandro
nesses dias que o silêncio toma a máquina de escrever e
contamina a alma, todo resto se cala. estava preenchida de azul, com os pés
enterrados na areia turva e cheia de sedimentos. o mundo exterior é um umbigo
fino repleto de ar e tudo se move de maneira lenta. Carlos chegou bêbado em
casa, sem nenhum dinheiro e parecia ter levado mais uma surra, essa bem pior
que as outras. e ela não sentia pena, nem raiva, não parecia pertencer aquele
quadro.
livros
não recebi nada nos dois últimos meses, por não entregar
duzentas páginas como o combinado, estava atrasada. no décimo capítulo, não
dariam o emprego a Carlos com a cara estourada, ela trabalhava muito, ganhava
pouco e estavam na lona. beberam a garrafa de vodca em grandes goles.
ela vomitou a manhã toda, quando melhorou escolheu seus melhores títulos e
vendeu para um sebo. garantiu jantar e bebida naquela noite.
a fome
a geladeira estava vazia mais uma vez, logo desligariam sua
luz e já pensava nos banhos frios que teria que tomar. o estômago reclamava e o
consolo era que nos dias bons compara muitos maços de cigarro. fechava os
olhos, a exaustão tomava conta da cena, hoje Carlos não voltaria para casa.
desistira centenas de vezes daquele capítulo,
reescrevia, relia, rasgava papéis e por mais que tentasse não alcançava
o sentido que lhe impunha a realidade. não conseguia se desfazer dele, por isso
não desistiria.
redoma de vidro
colecionava souvenires das mais belas cidades do mundo,
admirava mais os globos cheios de água e brilho ou pequenos flocos de isopor
que imitavam neve. estavam dispostos nas prateleiras mais altas para que não
fossem tocados por estranhos. não que quisesse conhecer lugares diferentes ou
ter sensações novas, mas apenas o deleite de estar presa dentro de uma esfera
segura. no décimo segundo capítulo, os baobás não tomariam seu planeta, tão
pequeno quanto o do príncipe. datilografou insana as cinco páginas e com os
olhos cheios de água sufocou, aquela tarefa vencia suas forças. a casa já não
era um ambiente controlado, ele não era a rosa, nem o único do universo, mas a
constatação de que precisava dele era assustadora.
amor
serviu-me a flor como prato principal. ensinou-me arrancar
pétala por pétala até chegar ao coração. esse sim, era iguaria fina
desconhecida ao meu paladar que aprendi a degustar e salgar por suas mãos
teatrais. no décimo terceiro capítulo, ela descobriu que a alcachofra não é
flor e sim inflorescência, como o abacaxi. juntou os papéis de seu último
pretenso livro e os jogou pela janela, rindo! um copo com uísque, não em grande
dose mas o suficiente para fazê-la dormir.
dados
lançaram-se extremos sobre o veludo azul, fácil demais para
ser real. “seis, dois”, gritava o crupiê. suspiro do que não veio. no décimo
quarto capítulo, perceberam que os dados são viciados derrota. um era seis e o
outro nunca caía com um, ambos infiéis provocadores. se juntos somassem sete ou
onze não estariam entregues aos jogos de sedução nem ao dilema da perda.
cortinas
pensava que ser livre era bom, se perder nas escadas
rolantes, estacionamentos rotativos e vagões do metrô. se entregar a estranhos
era divertido e perigoso. espiava por trás das portas e não se assustava com
mais nada. no décimo quinto capítulo as igrejas estavam lotadas e ela já não
queria perdão, enrolaram o corpo nas cortinas e os dois desceram com ele pela
saída de emergência.
a cruz
a ignorância imperava ali. comprara um martelo e se encheu
de alegria. nunca fora tomado por um sentimento tão crucificante e redentor.
hoje todas aquelas redomas de vidro seriam quebradas. no décimo sexto capítulo,
os olhos de Carlos estavam vazios e só pensava no dolo de quebrar a resistência
dela.
preâmbulo
o cansaço dominava o cenário, cochilou com o cigarro entre
os dedos. o vazamento da pia dava o compasso da cena. a boca aberta, podia
ouvir seu coração e a quietude sob a coberta alaranjada. a sensação de sossego
beirava a fúria, jamais confessaria o que fez. talvez a beleza das coisas
resida nesses momentos suspensos. o tudo habita onde aparentemente nada
acontece.
circo
se dissesse que não gostava do espetáculo ririam de mim.
tenho antipatia por palhaços, pois se parecem comigo. minha desgraça é pano de
fundo para a alegria alheia. a platéia esperava ansiosa pelo globo da morte, o
barulho ensurdecedor para quem não quer ouvir mais nada. no décimo oitavo capítulo
as labaredas giravam na mão daquele homem, segurava as adagas como se não
cortassem. o público vibrava e a roda girava num ritmo frenético. ela era o
alvo do atirador de facas.
winchester
Carlos teve mais sorte, tinha amor por ele e sei que seu desvio
era por conta da personalidade opressiva de sua mãe. entrou pela saída de
incêndio, todo molhado, numa noite chuvosa e foi ficando. já no décimo nono
capítulo ela dizia: “o último cara que me bateu acabou dentro do rio, matei com
dois tiros depois de ter batido nele, empalado seu lindo rabinho com o cano de
winchester. quis mesmo esfaqueá-lo no coração, mas não gosto de mortes
sangrentas e nem tenho um canivete. era uma bicha enrustida, chegou confessando
paixão por mim, mas não conseguia ter ereções e me espancou por conta disso.
não perdoo esse tipo de comportamento imbecil, não perdoo!”.
o boi
a quase guerra duma camisa no varal com o vento. uma cerca
de arame farpado protege o quintal. o mito passeia pelo paladar, é carne! nada
bucólico, cru, não causa náuseas e mata a fome. no vigésimo capítulo, sob a
sombra da pedra preta, Guernica pasta. é bovina a carne que dobra no prato e
meu olho desprende mil farpas na direção daquela camisa suada, entreaberta
sobre o peito dele. consumo a erva da beira da estrada, a mesma que alimentou o
boi. Carlos dorme, alheio à refeição e ao mito.
olho mágico
se olharam fixamente sem dizer uma só palavra. uniram-se
para ver em alto relevo, o sangue na jaqueta de couro era só pretexto, o que
queriam mesmo eram sensações em três dimensões. enquanto um sufocava, o outro
respirava com dificuldade e o terceiro nem isso. mal se davam conta que
precisariam se livrar do corpo, beberam até perder os sentidos e dormiram com o
morto naquela noite.
pretextos
estavam cúmplices desde o princípio, sem ausências. mesmo em
pequenos gestos conseguiam se entender. um era o limbo, não podia se perdoar
pelo frequente equívoco de fazer promessas que não cumpriria. o outro era o
oposto, não se prendia a nada. nesse capítulo descobririam que ambos são
mendigos, andarilhos errantes. perderam o rumo, se contentavam com migalhas.
não há um ser que se possa chamar de “casa”.
luzes
não havia confronto ali, só um misto de desesperança e
culpa. sem querer ficar ou fugir fingia dormir por não querer falar nada. a rua
esteve escura por muito tempo, mas haviam tomado providência e as luzes naquela
noite foram acesas. cada um de um lado da cama, quase uma avenida entre eles e
um silêncio aterrador. ele conseguia ver as pessoas passando. pareciam formigas
em suas filas coordenadas. por mais que pensasse em uma saída digna, Carlos
sabia que estavam condenados a um fim trágico.
a bailarina
lembrava de meu pai naqueles dias de chuva, foi num dia como
aquele que foi e não voltou. ele nunca esteve muito tempo dentro de casa e
recordava-me dele apenas pelos presentes que trazia e pelo cheiro de bebida e
cigarro que exalava. trouxe-me uma vez uma caixinha de música, dessas que vem
com uma bailarina. talvez por isso bebia e fumava tanto, para ter de volta o
cheiro de infância. no vigésimo quarto capítulo, Carlos a tirava pra dançar e
ela sentia-se como a bailarina da caixinha, rodando, bêbada, sobre um mar de
espelhos.
calundu
a mãe falava com os mortos e cedia seu corpo a eles. Carlos
lembrou de que quando criança ouvia conversas no escuro, sussurros por trás das
portas e nunca soube dizer se era a religião ou o estilo de vida dela. ao amanhecer
o banhava com unguentos e canções de maldição, um culto secreto de glória ou de
lamentação, como saber? recordava que fora tomado por tios e por desconhecidos
e não se lembra se vivos ou não. o certo é que era violentado por herança
materna. no vigésimo quinto capítulo, ele escondia o rosto para chorar e
sufocava os soluços no travesseiro. a fita da máquina de escrever estava gasta,
mas mesmo assim queria continuar escrevendo, ela não era sensível e nem tinha
tato para assuntos tão pessoais.
o disco dos símios
o vinil está sujo, a agulha vai e volta no mesmo ponto, mas
ninguém desliga a vitrola. uma varejeira sobrevoa as sobras do nosso jantar,
talvez o último. uma mosca consegue nos desprender da uniformidade da cena. é
verde e voa rápido demais. não temos mais o que falar, só ficou a indiferença e
o desprezo. Carlos num único e certeiro golpe a derruba e tudo volta ao normal.
no vigésimo sexto capítulo, o relógio parou
e está estático como o retrato dos três macacos. o cego insiste em
ouvir, o surdo insiste em falar e o mudo cansou-se de tudo.
tramontina
trago marcas de faca no peito, no ombro esquerdo e nas
pernas. foi a falta de amor de meu pai por minha mãe que causara tais
cicatrizes. herdei dele o abandono precoce e dela os amantes. e é aí que a
minha história se parece com a de Carlos, a diferença é que não acredito em
espíritos. no vigésimo sétimo capítulo, eles arrastavam um corpo para o rio,
quase não havia sangue, não fosse o orifício no peito do primeiro tiro, o único
que sangrava. os amores rasgam feito as facas de cozinha, pouco afiadas para
não cortar os dedos, mas pontiagudas e no tamanho ideal para furar fundo.
peixe morto
já te pedi algumas vezes para que não me olhasse assim, esse
seu jeito quase me dói, sabe bem de meus defeitos, não ouso enganar ninguém.
hoje posso ficar mais um pouco só pra te agradar, vir deitar mais cedo, encher
seus ouvidos de sonhos e seu corpo de amor. no vigésimo oitavo capítulo, deixou
o sol dormir um pouco mais e sustentou os medos dele entre seus seios, sem
promessas posteriores. era mais fácil amar de verdade no passado que no
presente. lá no passado, como lembrança trancafiada em algum canto escuro, o
amor é garantido por ser pretérito. ontem deparou-se com vários olhos como os
dele boiando na lagoa Rodrigo de Freitas.
baixio das bestas
datilografou três possíveis desfechos para a cena, no vigésimo nono capítulo, o personagem
permanecia caído no chão. a malhação do bode
expiatório cabia bem à ocasião, as pessoas se acalmam ao extravasarem suas
insatisfações, mas por hora não descartaria os pregos e nem a arma de fogo. ela
indagava-se diante da humanidade que crucifica seu salvador é melhor dar a
outra face, abotoar nele o paletó de Judas ou deixar que ele resolva o problema
sozinho?
liberdade
inspirei como se fosse só pulmões e expirei como se botasse
até a alma para fora. a consciência berrava ao mesmo que me entregava em gozo
silencioso. Carlos colocou o cano da winchester na boca e sentiu o gosto do
chumbo. em algum momento ela o comparara a Hemingway, então se sentiu em cuba,
quase revolucionário, num desespero que beirava crença. ao menos agora a consciência
também se calaria.
dedo médio
seus dedos eram curtos, mas a cabeça podia voar. não
entendia as filosofias, nem as palavras difíceis que ela datilografava o dia
todo para colocar comida na mesa. não entendia o motivo das pessoas perderem
tanto tempo lendo um livro sem nenhuma figura. a janela era mais interessante,
os transeuntes eram diferentes e tão iguais que por vezes pareciam o mesmo
passando repetidamente no mesmo lugar. o cano da winchester era longo demais e
ainda assim seus braços compensariam a insuficiência dos dedos, ele já havia se
decidido.
miolos
gastei alguns neurônios para entender Schopenhauer no seu
aspecto existencial, mas ao concordar com ele em vários pontos abdiquei da
esperança. apetecia-me o sabor das vísceras de animais, o fígado era o mais
apreciado. no trigésimo segundo capítulo, encontra Carlos sentado no chão com
os olhos fechados, cabeça pendida sobre o peito, mais uma vez o comparou com
Hemingway, mas ele era melhor, conseguiu tocá-la como poucos. mas o cheiro de seus
miolos não sai das narinas, não sai.
retroescavadeira
não há discernimento em autobiografias, era melhor falando
dos outros. propaganda enganosa é o falar de si, pura e simples propaganda
enganosa, pensava. Carlos morto explica-se melhor que ela. olhava para ele como
quem observa um detento, sabia que não gostava de ternos, dizia que sempre o
apertam em algum lugar, mesmo os feitos sob medida. desconhecia o terno e
quando eclodia em sua alma perturbada, internava-se. sabia mais dele do que de
si.
buraco negro
datilografei mais de cem páginas perseguindo um personagem
que tentei manter à distância. tarde demais, já era um objeto em órbita de
colisão sem escape, atraída de volta à região de onde fora gerada. poderia me
perder no céu de sua boca, feito o sentido das palavras voltadas à verborragia
incrédula de quem não crê em semiótica. no trigésimo quarto descobre que nem as
estrelas vivem para sempre e que perdera por completo o controle da situação,
encontrava-se em colapso caindo sobre si mesma.
metafísica
sua voz grave insistia em chamá-la, enquanto sentia seu
membro rijo entre os dedos, desejava que eles passeassem debaixo do vestido,
afastaria a renda delicada da calcinha para sentir o quanto ela estava molhada,
apenas vislumbrar a cena o conduziria ao gozo.
Carlos não estava ali e ainda habitava seus poros,
lembranças e entranhas. os pensamentos dela eram iguais aos dele, então abriu
as pernas e com dois dedos penetrou-se com força, várias e continuadas vezes. a
lembrança dele chamando pelo seu nome não seria o bastante, não hoje.
símios
enfim conseguiu chegar ao fim, eram os últimos capítulos. há
quem não tenha noção desses ciclos que permeiam a existência. um assassino
deveria saber que matar uma pessoa é difícil, imensamente difícil, até porque o
golpe proferido é o mesmo e de igual proporção ao que lhe atinge, fere e
castra, no mesmo momento que mata. e essa dor vai e volta, no mesmo lugar, como
vinil sujo. ela podia dizer que se defendeu, que fora vítima dele incontáveis
vezes, mas ser vítima é melhor que ser igual ao agressor, ou não? já não sabia
dizer se era culpa ou redenção. a lembrança do morto era a coisa mais nítida
que tinha em si. mas depois que uma pessoa morre em seu coração, não tem mais
volta, não tem.
infâmia
a lembrança do corpo afundando no rio ia e vinha, como o
próprio movimento do defunto. era branco, jovem demais e passou dos limites,
antes que o matassem. ela quase ria, era mesmo uma vingança crua. o olhar de
Carlos era único, não era remorso, não era rancor, de certa forma ele
submergira com o morto. parecia guardar o universo na retina funda e negra,
feito a água naquela noite de lua minguante.
ampulheta
via as vidraças sujas, mas não queria limpá-las. não era
preguiça, tinha mais a pensar, tantas páginas para escrever, tanto o que
expressar. as teclas sonoras entoavam uma canção antiga, enquanto a luz tentava
passar pelo vidro. voltar o tempo é impossível, mas é o que mais desejamos. não
seria mais coerente tentar pensar e aproveitar melhor o presente, para que no
futuro essa sensação de querer voltar o tempo não seja tão latente?
aprendiz
fosse um misto de insegurança e certeza, nem isso. aquilo
era torpor cego, loucura. personagem comandava certeiro e brotava em cada linha
mal feita, em cada palavrão dito enquanto ele dormia. determinada a fechar
aquele ciclo digitava calada e faminta pelo verbo. no trigésimo nono capítulo,
não era Carlos que pulava a janela e sim a realidade nua, violenta e sem
alegorias, aprendia com ela.
plenitude
antes de cicatrizarem as feridas criavam cascas, havia um
prazer mórbido em cutucá-las até sangrarem. suas mãos suavam enquanto pensava
noutro capítulo. e como se esperasse o penetrar sagaz de mais uma daquelas
vontades compulsivas de escrever qualquer asneira, respirava fundo. a estação
mudava e o cheiro da tempestade entrava pela mesma janela que ele entrou.